detalhe de foto de José António Barão Querido, alçada da tapada

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Conferência no I.D.N. «Seis Reflexões sobre os Desafios de uma Estratégia Nacional»

December 17, 2008

Jorge Sampaio

Presidente da República (1996-2006)

SEIS REFLEXÕES SOBRE OS DESAFIOS DE UMA ESTRATÉGIA NACIONAL

Lisboa,
Instituto de Defesa Nacional
17 de Dezembro de 2008

 

 

Senhor Ministro da Defesa Nacional
Senhor Director do Instituto de Defesa Nacional
Excelências
Minhas Senhoras e Senhores

Tenho o maior gosto em regressar ao Instituto de Defesa Nacional, na minha dupla qualidade de antigo Presidente e de vizinho, e quero agradecer o convite, que muito me honra e que, por razões várias, não devia ter aceite.
Desde logo, porque a estratégia nacional é um dos temas em relação ao qual os antigos Presidentes da República detiveram especiais responsabilidades, o que torna o presente exercício algo delicado. Por outro lado, porque desde há muito tempo me habituei a pensar no Instituto de Defesa Nacional como o lugar onde se reflecte, de uma forma séria e rigorosa, sobre a estratégia nacional e, nesse sentido, preferiria sentar-me do lado dos auditores, sem correr o risco de estar a pregar a quem sabe mais do que eu sobre a matéria. Mas há, ainda, uma outra razão: a constância da estratégia nacional, ou a força das suas linhas de continuidade, é tão forte que, das duas uma: ou não me resta grande coisa para dizer, a não ser repetir as mesmas grandes orientações, confrontando-as porventura com os problemas do momento; ou então, cometo a imprudência de vos falar da ambição que tenho para Portugal, projectando-a num horizonte temporal de 10 a 15 anos.
Compreenderão, por certo, que opte por este último, mas bem mais incerto, caminho, com todos os riscos que tal aventura comporta. Creio, porém, que vale a pena tentar, porque, num tempo de instabilidade e pessimismo generalizados como é o nosso, em que todos os dias somos surpreendidos por notícias quase sempre más e de impacto negativo global, importa conciliar os vários tempos de concepção e de actuação, o curto e o médio prazo que o imprevisto e a emergência exigem, com o longo prazo, no duplo plano retrospectivo e prospectivo, que qualquer visão estratégica pressupõe.
Entendo de facto – e quero sublinhá-lo – que para definir uma estratégia nacional realista e consequente, é preciso que tenhamos consciência da situação de que se parte, avaliando os pontos fortes e os pontos fracos. Só com esta consciência se pode potenciar as vantagens dos primeiros e atenuar os inconvenientes dos segundos. Só assim é possível valorizar o que é bom e transformar o que está mal. Mas, para tanto, é também necessário, ter em mente uma visão do futuro que queremos para Portugal e dos desafios globais com que nos confrontamos, antecipando tendências e evoluções, mesmo se a incerteza e a instabilidade constituem determinantes essenciais do mundo em que vivemos.
Nas seis reflexões que se seguem, espero não ser demasiado longo: a minha estratégia não é derrotar pela usura, mas apenas a de contribuir com algumas questões para o debate que, em boa hora, foi aberto pelo IDN. Debate que porventura se irá focalizar mais sobre questões de defesa, mas que eu hoje quis deliberadamente situar no âmbito de uma concepção mais vasta de “segurança humana”, que antes de mais coloca as pessoas – e neste caso, os portugueses – no centro de qualquer estratégia, cujo propósito só pode ser o de a todos procurar garantir mais e melhor paz, desenvolvimento e direitos humanos.

*

Uma reflexão preliminar: os três vectores da estratégia nacional

Na minha opinião, a estratégia nacional tem três vectores fundamentais.
O primeiro vector é a própria comunidade nacional, princípio e fim de qualquer estratégia nacional. A finalidade da estratégia nacional é garantir as melhores condições que podem assegurar a independência de Portugal e a protecção dos portugueses, dos seus valores e padrões de desenvolvimento, a continuidade do Estado e da comunidade portuguesa, bem como a nossa afirmação no plano internacional.
Sabemo-lo bem, mas não faz mal lembrar, que Portugal é uma nação muito antiga, com uma história ímpar, uma cultura universalista e prestigiada e uma forte identidade, sem conflitos étnicos, religiosos ou regionais, com um nível elevado de desenvolvimento, sem problemas de fronteiras nem diferendos internacionais por resolver. A meu ver, estes são poderosos trunfos no mundo globalizado, que uma estratégia nacional adequada tem de saber proteger e potenciar.
O segundo vector é a legitimidade das instituições representativas da vontade nacional. Os regimes autoritários minam a confiança das nações, que só se podem unir como comunidades livres quando existem os quadros constitucionais indispensáveis para assegurar os direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos, iguais perante a lei. A independência e autonomia nacionais não podem ser separadas da qualidade das nossas instituições democráticas, sem a qual a capacidade de prestação e de resposta do sistema político resultará sempre prejudicada.
O 25 de Abril de 1974 e as subsequentes escolhas democráticas dos Portugueses restauraram a legitimidade das instituições políticas. Hoje somos uma democracia estabilizada, com instituições políticas que funcionam regularmente e com uma Constituição que deixou de ser um factor de controvérsia e divisão, ou um álibi para justificar que não se faça o que se entende indispensável fazer.
O terceiro vector é a inserção do Estado no sistema internacional como entidade autónoma e separada.
É bom não esquecer que foi a democracia portuguesa que permitiu a Portugal reconquistar uma posição internacional, aderir à Comunidade Europeia, consolidar o seu lugar na aliança das democracias ocidentais e, assim, recuperar as condições de uma política externa efectiva.
Portugal goza hoje de um prestígio muito superior à sua dimensão geográfica, dispondo de um lugar internacional claro e definido, o que potencia a sua capacidade de intervenção como membro activo das Nações Unidas, da União Europeia, da Aliança Atlântica, da CPLP e de outras instâncias multilaterais.
Nenhum responsável nacional pode ignorar que a segurança de Portugal e dos Portugueses é inseparável da sua inserção na Comunidade Internacional. A tentação de nos imaginar, outra vez, “orgulhosamente sós”, só não é ridícula por ser demasiado perigosa e recorrente nos movimentos populistas e nacionalistas que se opõem aos grandes consensos da política externa da democracia portuguesa com argumentos de facilidade sobre a defesa da soberania nacional.

Segunda reflexão: a integração europeia, a aposta estratégica da democracia portuguesa

A minha geração política formou-se no momento em que a natureza do regime autoritário nos impôs uma guerra impossível nas colónias africanas e fechou a Portugal a alternativa da integração europeia.
O 25 de Abril é o resultado do reconhecimento dos riscos que o prolongamento excessivo desse impasse fazia correr à estratégia nacional. A decomposição do regime autoritário impedia-o de realizar uma estratégia de transição, as Forças Armadas forçaram uma ruptura.
A escolha democrática e europeia dos Portugueses nas eleições do pós 74 determinou o sentido político e estratégico dessa ruptura. A valorização da dimensão europeia da estratégia nacional fez parte das grandes opções da democracia portuguesa e foi também a resposta estratégica de Portugal à alteração do seu posicionamento internacional na sequência da descolonização.
Permitam-me que vinque bem que foi a opção europeia fundamental da democracia portuguesa que provocou uma verdadeira revolução copérnica no nosso posicionamento internacional. Hoje, embora mantenhamos naturalmente laços privilegiados com os países de Língua Portuguesa, podemo-nos orgulhar de ter – perdoem-me a expressão – descolonizado as nossas relações mútuas. Ora, só a nossa integração na Comunidade Europeia tornou possível esta evolução, tornando-nos um parceiro respeitado da lusofonia na Europa e um interlocutor europeu insuspeito junto dos países de língua portuguesa, mas também em África em geral. Gostaria igualmente de frisar que a nossa integração europeia trouxe ainda uma alteração qualitativa das nossas relações bilaterais em geral e, muito particularmente, com Espanha, país que, por razões históricas e geo-estratégicas bem conhecidas, pesa como nenhum outro nos destinos de Portugal.
Tenho obrigação de saber que não é fácil, para quem tem como primeiro dever a defesa dos interesses nacionais, reconhecer que esses interesses só se podem, hoje, defender eficazmente num quadro multilateral e de acção colectiva. Por isso, o nosso dever é saber conciliar a procura da maior autonomia possível para o Estado com a ausência de ilusões acerca dos limites que nos são impostos pela própria natureza do sistema internacional. Mais do que isso até: o nosso dever é saber potenciar os interesses nacionais a partir e no quadro do sistema internacional.
Foi esse realismo político que conduziu a política do Estado no processo de integração europeia. A integração europeia tornou possível a consolidação das estratégias de modernização da economia e da sociedade portuguesas, numa linha geral de abertura e de convergência no quadro da Comunidade Europeia.
As pessoas da minha geração têm a obrigação de testemunhar as mudanças extraordinárias dos últimos trinta anos, que transformaram um país arcaico e rural numa sociedade urbana e moderna. Por certo, os atrasos acumulados persistem ainda, mas foram feitos avanços significativos na resolução dos problemas que se arrastavam e pareciam sem solução. Num processo que não foi isento de dificuldades e polémicas, pode dizer-se que estão hoje identificados os nossos principais problemas estruturais e está feito o diagnóstico das nossas principais carências e bloqueios.
Assim concluo, afirmando com convicção que, pessoalmente, não tenho quaisquer dúvidas de que para Portugal a aposta certa foi a Europa e que, no processo do contínuo aprofundamento da construção europeia, temos sabido encontrar um lugar e um papel próprio, reforçando a identidade e independência nacional e consolidando a nossa presença no mundo.
Graças à integração europeia, Portugal tem beneficiado das melhores condições possíveis para se modernizar e desenvolver, bem como para fazer face às mudanças profundas nos equilíbrios internacionais depois da unificação da Alemanha e da dissolução da União Soviética.
Por isso, desde 1991, a nossa politica europeia orientou-se no sentido de estar na primeira linha da construção da nova Europa, em todas as dimensões. Portugal pertence ao Espaço Schengen, desde o início, e decidiu participar na criação da moeda única, apesar da dificuldade em cumprir os critérios de acesso estipulados dentro do calendário previsto pelo tratado da União Europeia. Por último, em 1995, Portugal quis estar presente na Força de Intervenção na Bósnia Herzegovina (IFOR), com um destacamento militar muito significativo. Desde esse momento, as Forças Armadas portuguesas participaram em todas as missões militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte e da União Europeia nos Balcãs, em África, no Médio Oriente e na Ásia Central, bem como nas sucessivas missões das Nações Unidas em Timor-Leste. Essa decisão politica e as notáveis qualidades profissionais das nossas Forças Armadas asseguraram o reconhecimento internacional da nossa vontade e da nossa capacidade para assumir responsabilidades relevantes nas novas missões militares em teatros de crise.
Permitam-me que termine este conspecto com três conjecturas:
– A primeira é que, se não tivéssemos aderido à Comunidade e se a Europa não se tivesse constituído como um espaço unificado de integração regional e actor regulador da globalização, a autonomia de decisão política e a afirmação externa de Portugal, designadamente como parceiro incontornável da CPLP, seriam dramaticamente inferiores às de hoje.
– A segunda é que, com a internacionalização crescente da economia, as características socio-económicas e com o nível de desenvolvimento que Portugal apresentava aquando aderiu à CEE, é duvidoso que tivéssemos conseguido encetar, com êxito, o ciclo de modernização do país e reforçar a coesão territorial, económica e social do país;
– A terceira é que, com a multiplicação de ameaças difusas e o aumento dos fluxos de criminalidade internacional, é duvidoso que Portugal, com a situação geográfica particularmente exposta que detém, conseguisse assegurar por si só a segurança e a defesa do seu território e gentes.

Terceira reflexão: o pós 11 de Setembro

As condições políticas e estratégicas do pós guerra fria opuseram às ilusões da vitória das democracias um quadro de transição onde se acumulavam os factores de instabilidade e de incerteza, incluindo o regresso da guerra à Europa, a ressurgência dos fundamentalismos e a multiplicação de Estados falhados em todos os continentes.
Os atentados terroristas contra os Estados Unidos, a 11 de Setembro de 2001, precipitaram o quadro de crise de uma forma dramática, revelando, ao mesmo tempo, toda a sua complexidade.
No meu entender, o 11 de Setembro, bem como a tragédia de todos os ataques terroristas que se têm repetido ao longo dos tempos, nos quatro cantos do mundo constituem verdadeiros factos traumáticos que vieram abalar muitas das nossas certezas, revelando formas e actores de violência até então desconhecidos e levantando a questão fundamental de princípios e definições que julgávamos adquiridos. Basta pensar no Afeganistão e na decisão unilateral norte-americana de invadir e ocupar o Iraque ou, ainda, na “guerra global contra o terrorismo” para medirmos a extensão da crise que se abriu ao nível dos fundamentos da ordem legal internacional, provocando um verdadeiro cismo. Cismo no plano europeu e transatlântico, mas cismo também entre o chamado “ocidente” e o “mundo islâmico”, que alguns se apressaram a ver como a manifestação de uma nova e inevitável guerra de religiões e culturas.
Nos últimos sete anos, entre os ataques contra Nova York e Washington e os atentados contra Bombaim, a dinâmica da crise internacional tem-se manifestado, constantemente, em múltiplos domínios. As redes terroristas islamistas, como a Al Qaida e os seus aliados, multiplicaram os atentados – em Bali, em Madrid, em Nova Delhi, em Londres – e mobilizaram todos os seus recursos para provocar um “choque das civilizações”.
A seriedade dos riscos de proliferação das armas nucleares obrigou as principais potências a unir esforços contra o regime autoritário na Coreia do Norte e sabemos como, com o Irão, o diálogo está bloqueado.
Inúmeros países da vizinhança europeia continuam paralisados, entre regimes violentos, e tantas vezes minados pela corrupção, e a ameaça de radicalização dos fundamentalismos, que impedem a consolidação dos Estados nacionais. O conflito Israelo-Palestiniano agudizou-se e passou agora a revestir novas componentes e dimensões, tributárias dos realinhamentos regionais e do equilíbrio de forças entre facções várias.
Os conflitos periféricos, nomeadamente os conflitos concentrados no arco crítico que une o Paquistão ao Golfo Pérsico e ao Cáucaso, tendem a agravar-se e a envolver as principais potências internacionais numa lógica de competição estratégica cada vez mais perigosa.
A consolidação de alguns regimes autoritários e a persistência de impasses e de velhos hábitos imperiais, as incertezas que pesam sobre o sentido dominante na transição pós-comunista na Rússia, bem como as dificuldades de uma visão estratégica do relacionamento euro-russo constituem factores de instabilidade de imprevisível evolução.
Ademais a crescente procura de certos recursos naturais básicos – como a água, alimentos, petróleo ou gás – confrontada com a sua escassez e desigual repartição é susceptível de originar novos conflitos e guerras.
Por último, atravessamos, como é sabido, uma grave crise financeira e económica, cujas consequências ainda não nos são totalmente claras, mas que se poderá assemelhar à Grande Depressão de 1929 pela sua amplitude e imprevisível duração. As instituições internacionais, nomeadamente o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, foram incapazes de antecipar e conter. Certo, porém, é tratar-se de uma crise global, afectando e infectando todas as economias do mundo e que parece pôr definitivamente em causa o chamado Consenso de Washington, desacreditando os pilares da ideologia do liberalismo financeiro, ou seja a capacidade de auto-regulação dos mercados, a desregulação e a liberalização financeiras. As consequências políticas de uma crise económica e social prolongada, à qual se somam, em certos casos, profundas divisões nacionais e religiosas que minam a coesão do Estado parecem cenários verosímeis.

Quarta reflexão: tendências mundiais – o mundo em 2025

Fazendo agora um exercício de prospectiva e apesar do carácter contingente e incerto de quaisquer cenários futuros, considerados no seu conjunto, os elementos que acabei de enumerar permitem identificar algumas tendências e vectores que provavelmente marcarão o mundo num arco temporal de 10 a 15 anos.
Embora o risco seja o da futurologia, vale a pena um esforço de sistematização das hipotéticas tendências principais porque só assim nos podemos preparar hoje para responder aos desafios de amanhã.
Segundo o recente relatório publicado pelo National Intelligence Council sobre “As tendências globais em 2025: um mundo transformado”, entre os factores relativamente certos ou prováveis, susceptíveis de determinar os contornos do sistema internacional daqui a 10-15 anos, podemos enumerar:

– a emergência de um sistema multipolar, marcado simultaneamente pela crescente afirmação do eixo do Pacífico (China, Índia, Coreia, Japão, EUA) e pelo aumento do poder relativo das redes de actores não estatais (multinacionais, ONGs, organizações religiosas etc);
– a manutenção dos EUA como potência mundial, embora tornando-se menos dominante;
– uma significativa deslocação da riqueza relativa e do poder económico do Ocidente para o Leste;
– o acesso a recursos escassos (energia, alimentos e água) poderá tornar-se-á num factor crítico devido à pressão acrescida do desenvolvimento económico (aliado a um aumento demográfico mundial de cerca de 1.2 mil milhões de pessoas em 2025);
– o aumento do potencial de conflitos devido a mudanças rápidas no “Grande Médio Oriente” e à difusão de capacidades letais;
– desestabilização e falência de Estados com população marcadamente jovem (Afeganistão, Paquistão, Iémen, Nigéria), se as condições do emprego não mudarem radicalmente;
– persistência do terrorismo;

Entre as condicionantes chave, mas sobre as quais domina a incerteza, o referido Relatório destaca:

– o futuro do multilateralismo e o seu papel na resolução dos problemas globais: reforço ou enfraquecimento ?
– A Europa e o Japão perante os desafios económicos, sociais e demográficos: sucesso ou declínio ?
– Grande Médio Oriente: estabilização do Iraque e resolução do conflito Israelo-Palestiniano ?
– China e Rússia – no caminho da democratização ?
– Armamentos e armas nucleares: proliferação ou controlo ? Papel do Irão na militarização regional.
– Mudança de paradigma energético: do petróleo e gás às energias limpas e renováveis;
– Alterações climáticas : impacto, controlo e catástrofes;
– Mercados globais e comércio internacional: regressão e regresso do mercantilismo ?

Ao relembrar este quadro, o meu propósito é duplo: por um lado, chamar a atenção para o facto de vivermos num mundo em mutação e também em transição. Por outro, sublinhar que a incerteza não pode ser um álibi para a inacção nem desculpa para se não antecipar os desafios do futuro.
O sistema internacional daqui a 10/15 anos poderá ser bastante diferente daquele que conhecemos hoje e que herdámos do pós-guerra. Nem podia deixar de ser porque as suas insuficiências e lacunas são hoje já bem tangíveis em inúmeros aspectos e vertentes. Mas, não é ainda clara qual a ordem que resultará das transformações em curso, que poderão ser aceleradas pela actual gravíssima crise económica e financeira.
A tendência para um sistema multipolar parece, porém, desenhar-se com alguma nitidez, com os riscos de instabilidade, concorrência e rivalidades que lhe são inerentes, quer seja no plano comercial, dos investimentos, das inovações tecnológicas, no domínio dos recursos naturais ou até da expansão territorial e militar. Temos de estar preparados para enfrentar estes riscos e prevenir os seus efeitos nefastos.
Em termos económicos, a deslocação do centro de gravidade da produção mundial da riqueza parece consumar-se do Ocidente para a Ásia. Mas, por mim, tenho claro que o nosso modelo de desenvolvimento ainda não está esgotado e que as vantagens comparativas do chamado modelo social europeu constituem um trunfo e um acervo que nos dá um avanço inegável se o soubermos adaptar aos modernos desafios. Acredito também na larga vantagem que nos conferem a sólida prática do multilateralismo que pacientemente fomos acumulando ao longo dos últimos 60 anos e o legado de valores, princípios e direitos que moldam o nosso quotidiano e que nos levam a reclamar a igualdade de direitos e de oportunidades para todos, a democracia, o Estado de direito e a economia de mercado como preceitos basilares das nossas sociedades e, mais ainda, como, digamos, a ambição que ousamos ter para o mundo enquanto respaldo do sonho universal da paz perpétua…
Em termos de segurança colectiva, deixem-me também que me pronuncie pela absoluta necessidade de uma estratégia global que, não sendo um fim em si mesma, mas apenas um meio para realizar um conjunto de finalidades, está inequivocamente ancorada na Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas, ao abrigo da qual a responsabilidade de proteger, que constitui o âmago da soberania nacional, cabe aos Estados.

Quinta reflexão: a força e as fraquezas da democracia portuguesa, elementos para uma estratégia nacional

Perante a dinâmica de crise e a sua escalada, que têm dominado a política internacional, a definição da estratégia nacional tem de assentar em dois princípios fundamentais:

– O primeiro aconselha a reforçar a estabilidade, a solidez e a credibilidade do Estado e das suas instituições, a mobilizar os cidadãos para a acção, a fortalecer a coesão nacional, a consolidar as nossas alianças e vínculos tradicionais, também aumentando assim a nossa capacidade de intervenção internacional. Só assim se consegue assegurar o essencial, mantendo a capacidade de responder a situações de emergência, sem contudo abandonar ou contradizer o rumo fundamental, e, ao mesmo tempo, suscitar a confiança dos portugueses. À actual crise deve responder-se como se responde quando um país está em guerra: mobilizando, unindo, falando verdade, cooperando e agindo.
– O segundo princípio aconselha a aproveitar a instabilidade própria da crise para definir e aplicar uma agenda das mudanças necessárias e no sentido certo. Ao proceder-se assim, é como se se aproveitasse uma doença para mudar hábitos e rotinas (alterar hábitos alimentares perniciosos, deixar de fumar, fazer exercício físico).

Em tudo isto, fundamental continua a ser a força da democracia portuguesa, a nossa determinação para encontrar nos desafios externos e internos razões adicionais para continuar a construir solidariamente o nosso destino colectivo. A confiança na vontade nacional e nas instituições que representam a soberania portuguesa é penhor da nossa confiança na capacidade para definir a melhor estratégia para ultrapassar esta crise.
Tendo em conta a nossa experiência recente, os objectivos que alcançámos e que enumerei anteriormente, considero que os desafios que estão por vencer são os seguintes:

– A democracia portuguesa, embora consolidada, tem uma história ainda jovem e sobre ela paira a sombra de uma tradição anti-democrática não inteiramente desvanecida;

– Por outro lado, há sinais crescentes de afastamento entre os cidadãos e as instituições, entre os representantes e os representados, que se expressam nomeadamente em níveis elevados de abstenção eleitoral, na falta de renovação das elites dirigentes, na pouca atractividade da actividade política, no fechamento dos partidos políticos;

– À crise internacional soma-se a uma crise nacional persistente porque, apesar de correctamente diagnosticados, alguns dos nossos problemas de fundo arrastam-se há anos sem resolução, gerando uma ideia de impotência e de falta de alternativas, o que favorece a resignação e o fatalismo. Entre esses problemas, estão:

• Problema da governabilidade do país que, se nos últimos tempos tem estado oculto por força da existência de uma maioria absoluta poderá, nos próximos tempos, irromper de forma dramática;

• dificuldades constantes em reformar o Estado e a administração pública, os quais são muitas vezes dominados põe uma cultura de prepotência administrativa, de centralismo abusivo e de arbitrariedade burocrática,

• existência de uma cultura de dependência excessiva e parasitária em relação ao Estado, ao mesmo tempo que toda a gente diz mal dele,

• frequente prevalência ilegítima dos interesses sectoriais sobre o interesse geral, que só um programa político maioritariamente sufragado pode definir;

• insuficiência dos esforços de modernização nas instituições da sociedade civil (associações patronais e sindicais, ordens e associações profissionais, organizações culturais, etc.) e persistência de muitos reflexos atávicos, que denotam arcaísmos paralisadores e inadequados ao nosso tempo,

• apesar de ser uma sociedade aberta e de ter experimentado alguns progressos, a nossa sociedade civil continua pouco autónoma, pouco ousada, pouco criativa e pouco dinâmica,

• na economia, continua a ser necessário apostar num conjunto de actividades exportadoras de bens e serviços de qualidade, competitivos e com forte procura a nível mundial; em empresas assentes na inovação, na tecnologia, no empreendedorismo, na qualificação dos recursos humanos e no valor dos bens e serviços nacionais para que possam vencer a concorrência nos mercados interno e externo; numa política deliberada e activa para a captação de bons investimentos estrangeiros, tanto mais fundamentais para a modernização da economia e para o financiamento do défice externo quanto já entrámos numa fase de significativas restrições nos sistemas financeiros internacional e nacional; e numa política de diversificação de mercados de destino das exportações nacionais (exemplos, Angola, África do Sul, Brasil);

• no plano energético, do ambiente e das alterações climáticas, há desafios importantes a vencer, para aplicar um modelo de verdadeiro desenvolvimento sustentável.

• no plano social, a manutenção, e mesmo o aumento, das desigualdades sociais, da exclusão e da pobreza, são sintomas de subdesenvolvimento que causam sério dano à coesão social e dificultam a integração;

• a existência, há vários anos, de sectores fundamentais em crise e em instabilidade crescente (justiça, educação) afecta gravemente a imagem da democracia e desprestigiam o Estado, além de hipotecarem o futuro, gerando desconfiança (por exemplo, no que respeita ao investimento) e impedindo o desenvolvimento;

• persistência de dificuldades nas reformas das Forças Armadas, quando há muito se sabe o que é necessário e que, em matéria de defesa e de produção de segurança, há que atender ao triângulo virtuoso do interesse nacional, do compromisso internacional e das capacidade reais;

• Há algumas lacunas na concepção da segurança cooperativa, como conceito abrangente, que cada vez mais tem de englobar, não só a defesa que cabe às forças armadas, mas também as forças de segurança interna;

• A existência de um clima de desprestígio das instituições, de desconfiança nos seus titulares e de “salve-se quem puder”, fomentado por sinais crescentes de corrupção, impunidade (com a ideia de que a “classe política” é toda ela corrupta e de que há uma justiça para ricos e outra para pobres) e pela promiscuidade entre o mundo da política e dos negócios é uma gravíssima ameaça à democracia;

• Há também entre nós alguns sinais de enfraquecimento das convicções europeístas, acompanhando-se, aliás, um preocupante movimento geral na Europa;

Sexta reflexão: Preparar o futuro

Tendo presentes estes pontos fracos e fortes, é preciso continuarmos a agir com resolução. Os últimos anos ensinaram-nos que o nosso mais sério problema é que, apesar dos diagnósticos estarem feitos e as terapias indicadas, tem havido dificuldades em pô-las em prática com continuidade e consequência. Arranjamos sempre desculpas, alibis, fugas. Por isso, interrompemos, abrandamos, desviamos, recuamos, escolhendo o mais fácil e evitando o mais difícil.
Temos agora de ter consciência de que os nossos pontos fracos, num quadro de crise internacional, podem ser ainda agravados. Mas esta crise obriga também a certas mudanças, que de outra maneira seriam de concretização mais difícil. É preciso saber fazê-las nas condições que nos sejam mais favoráveis.
Para isso, precisamos de:

– Afrontar a questão da governabilidade do país no quadro de uma futura revisão constitucional, ponderando temas como os da moção de censura construtiva enquanto tentativa de encontrar possíveis mecanismos institucionais de garantia de estabilidade política que são da maior importância para a nossa democracia;

– ter capacidade para estabelecer compromissos políticos e sociais sobre questões estruturais de longo prazo, não os pondo em causa por cálculo, conveniência ou oportunidade, consoante se está no governo ou na oposição;

– ter coragem para rejeitar o facilitismo, o populismo e a demagogia, fazendo o que é preciso fazer sem temer a impopularidade imediata;

– preferir o profundo ao superficial, o estrutural ao conjuntural, o duradouro ao efémero, o consequente ao provisório;

– apresentar alternativas políticas reais, enriquecendo o debate, assumindo as divergências e propondo escolhas, em vez de ficarmos reféns de conflitos tácticos e artificiais;

– não diabolizar o Estado, que tem qualidades, nem divinizar a sociedade civil, que tem defeitos. Mas também não divinizar o Estado, que tem defeitos, nem diabolizar a sociedade civil, que tem qualidades;

– fomentar nos cidadãos e organizações uma cultura de responsabilidade, iniciativa e participação – informada, esclarecida e exigente – bem como dos princípios da ética republicana;

– aumentar a solidariedade, reforçando o sentimento de pertença e de partilha, e evitando que os excluídos pensem que são ainda mais excluídos na crise, enquanto só os ricos e os poderosos são protegidos;

– desenvolver uma cultura moderna de risco, conhecimento, inovação e reforma de métodos e de mentalidades;

– promover uma cultura de tolerância, prevenindo os factores de racismo, chauvinismo e agressividade que as crises têm tendência a gerar;

– ganhar consciência de que a maioria dos nossos problemas têm de ser equacionados e enfrentados em quadros supra-nacionais (sobretudo no quadro europeu), rejeitando uma atitude paroquial e provinciana.

– capacitarmo-nos de que, para além da definição de estratégias, importa a sua execução e que, num mundo marcado pela interdependência, importa que uma estratégia nacional associe estreitamente sem as confundir, política de defesa, política de segurança interna, política externa, diplomacia económica e política da cultura e da língua portuguesa.
Excelências

Uma estratégia não pode resumir-se a um catálogo de medidas e muito menos a um rol de piedosas intenções. Como disse no início e agora repito, para ser realista, a estratégia nacional tem de assentar numa visão do futuro e na definição de uma ambição para Portugal.
Foi o que procurei aqui delinear com as seis reflexões que fiz. Mas uma coisa gostaria de deixar bem clara: para podermos enfrentar os desafios presentes e todos os que o futuro por certo nos trará, teremos de mudar porque o status quo não é sustentável a prazo.
Tal como aquando do 25 de Abril, a democracia portuguesa fez a aposta estratégica na Europa, teremos agora de ousar novas apostas, portadoras de futuro. Chegou a altura de inverter os papéis e de nos interrogarmos não tanto sobre o que a Europa pode fazer por nós, mas sobre o que nós podemos fazer por ela. Temos de apostar no reforço da solidariedade na comunidade ocidental, incluindo um esforço colectivo para garantir a estabilidade nos espaços periféricos cruciais para a nossa segurança. Temos de apostar no reforço da nossa posição internacional, através de uma diplomacia activa assente no uso intensivo dos instrumentos do soft power – a este respeito, não resisto aliás a dar o recentíssimo exemplo da proposta portuguesa de acolher alguns prisioneiros de Guantanámo, porque me parece uma excelente ilustração do que quero dizer. Temos de apostar no reforço da nossa credibilidade externa, aumentando a nossa capacidade de gerar consensos e de transmitir uma visão universalista do mundo, de saber usar de sentido estratégico e do conhecimento profundo que temos das nossas áreas tradicionais de influência – penso especialmente na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e na Comunidade Ibero-Americana.

Excelências

A influência de um país na cena internacional não se mede só em função da dimensão do território, da população ou do PIB, mas também da sua atitude afirmativa, empreendedora, valorizante e cooperativa, da sua capacidade em acrescentar valor, em se afirmar como parceiro credível da comunidade internacional, empenhado em contribuir activamente para a resolução dos problemas e o desenvolvimento de políticas cooperativas e inovadoras.
Isto significa também que temos de mudar a imagem de Portugal e, mais do que isso, que temos de mudar Portugal. Precisamos de um sobressalto de patriotismo, de nos unirmos para definir e aplicar com sucesso uma estratégia nacional. Não será fácil, mas vale a pena tentar porque é maior a probabilidade de assim se conseguir um melhor resultado do que com a solução ou a saída que, se nada se fizer, acabará por se impor por força das circunstâncias. Por mim, tenho a certeza – se quisermos, conseguimos!

Muito obrigado